Mãos Sujas
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Por: Julie Christie
Adalberto não nascera desajeitado, por isso não compreendia por que as pessoas ao seu redor faziam tanta questão de recordá-lo daquele fatídico episódio, o qual ele gostaria de, absolutamente, esquecer. E o mais triste é que em todas as ocasiões que a mera lembrança daquele acontecimento era evocada, a sua repulsa pelo ser humano aumentava. Sentia um desejo incontido e crescente de que todos ao seu redor desaparecessem. Sem rastros, não haveria culpa, pensava.
O que, para ele, parecia um projeto de simples execução, em um âmbito concreto, tornava-se quase impraticável dado o esforço hercúleo que exigiria de sua parte. No seu atual estado, o menor esforço seria objeto do mais profundo terror. Por conta disso, previa que a sua mísera existência permaneceria mergulhada na mais torturante escuridão. Mas por quê?
Sentia um peso sem precedentes. Pesava-lhe o ventre, os nervos, a alma. Tudo o exauria. Não conseguia mais caminhar direito, correr seria impensável. Sempre que virava o dorso para trás, sentia um olhar penetrante sobre si, como se uma presença invisível ocupasse o recinto. Mas nada ouvia. E bem pouco conseguia, efetivamente, deduzir.
A sua esposa, Dalila, outrora tão calma e sentimental, em uma certa noite, precisamente, enquanto ele dormia, tornara-se um ser repulsivo e hostil. Ela não lhe dirigia o olhar. Eram como estranhos sob o mesmo teto. E ele, por sua vez, não mais a reconhecia. Quando ela deixou de ser o amor da sua vida? Perguntava-se febril.
Tocar a pele de Dalila, senti-la estremecer, sempre fora um prazer. Hoje, transformara-se em um ato imundo. E todas as vezes que, por um sacrilégio, precisava tocá-la, sentia que as suas mãos se tornavam sujas. Precisava dar um fim àquilo.
“Adalberto, o seu jantar.” Juliana sussurrava atrás da porta. “Você precisa se alimentar, sair, caminhar...”. Mas como poderia pensar em se alimentar? Por um acaso não sabia que, uma grande parte de seus algozes poderiam estar, naquele momento, à espreita? “Traga-me mais suprimentos, por favor!”, era a única resposta que Juliana ouvia ao atravessar a porta.
Juliana, por sua vez, já não suportava mais aquela situação. Há exatos três dias que Adalberto se recusava a sair do quarto, o qual, por sinal, era seu também. O que fazer? Ele não ouve mais ninguém além de si mesmo, conjecturava solitária. Já havia tentado de tudo, inclusive chamar a sua sogra, com a qual não simpatizava. As crianças estavam assustadas, e não queriam, sequer, aproximar-se do quarto.
Perante a gravidade do caso, Juliana resolveu recorrer a ajuda especializada. Telefonou para a sua amiga Sônia, enfermeira do Hospital Geral, porém as cotas do plano de saúde já haviam acabado. E estavam sem dinheiro, àquela altura do mês, para pagar por uma consulta particular. Assim, resolveu ela mesma intervir e entrar no quarto. Acabaria com essa história de vez.
Aproximou-se da porta lentamente, bateu duas vezes, sem resposta. A porta, para sua surpresa, estava destrancada. Entrou e começou a chamar por Adalberto, pois o quarto estava vazio, mas impecável. Era como se ninguém dormisse na cama há dias. Ao entrar no banheiro, deparou-se com Adalberto, nu, e quase inteiramente mergulhado na banheira. Suas mãos pendiam para fora, ensanguentadas. E ele gritava, em frenesi: Eu a matei! Eu a matei. Estou livre. As minhas mãos não estão mais sujas.
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