Professor Wallace Pantoja conversa com o Jornal Digital sobre os desafios e os objetivos do Projeto “A Cidade no Beco da Luz”

Fonte: Editorial/Jornal Digital


 Por: Jaqueline Barros e Charles da Paixão


JD: Boa tarde, professor Wallace. Agradecemos por reservar um tempo para a entrevista. É uma honra poder conversar com o senhor sobre o trabalho que está desenvolvendo. Preparamos algumas questões para guiar nossa conversa sobre o projeto.

JD: O que te inspirou a criar o projeto "A Cidade no Beco da Luz"?

Prof. Wallace Pantoja: O que me inspirou foi um conjunto de fatores. O meu trabalho em Geografia sempre esteve ligado às experiências vividas, dinâmicas corporais e a relação com o espaço geográfico de um ponto de vista subjetivo, simbólico e emocional. Por razões diversas, não tem muito esse debate na Geografia Amazônica. Fomos formados na escola teorético-quantitativa ou na marxista, que convergiram para o formato - e a forma importa - da geografia paraense. Então, não tinha espaço para pensar o vivido ao nível das experiências corporais, das dimensões fenomenológicas e das subjetividades. O que me fez trilhar esses caminhos, quase solitário.

Além disso, nos últimos anos eu também saí do armário - embora fosse muito evidente às pessoas -, para quem vive a situação de dentro, sempre é um risco: seu emprego (a depender do ramo profissional), como as pessoas se relacionarão contigo, se você vira um alvo - ou seja, ser reduzido à sua orientação sexual, quando deveria ser um aspecto da tua multiplicidade viva.

Quando eu chego no IFPA Campus Belém, em 2020, depois do doutorado, me defronto com uma estrutura que tem uma tranquilidade aceitável. Aparentemente, como professor, ninguém vai te perseguir por ser LGBTQIAPN+. Existe uma respeitabilidade. Porém, esse "amortecimento" não me cega para notar que a estrutura institucional encaminha - o que a Sarah Ahmed chama - um tipo de coordenada geográfica como pressão sobre os corpos; não tanto como pontos cardeais, mas um conjunto de linhas de pressão que encaminham corpos para certos lugares em um sistema de referências espaciais. E, a depender da sua orientação sexual, cor, condição de classe social, gênero, os "amortecimentos" desaparecem na dureza violenta sobre o corpo.

Começo a perceber a reduzida diversidade no campus. Em termos de estudantes, por exemplo, quase não há estudantes indígenas. Poucos professores ou professoras LGBTQIAPN+ fazendo de sua condição de ser uma linha de reflexão e um plano de enfrentamento. Começo a entender como "a banda toca": não é mais proibitivo você ser LGBTQIAPN+, somos muitos e não podem varrer-nos para baixo do tapete - se pudessem, o fariam. Então, cria-se silenciosa e institucionalmente uma série de coordenadas, forças e linhas de pressão sobre os corpos para encaminhá-los para aquilo que se acredita ser aceitável dentro daqui. Comecei a perceber que usar o termo "bicha" (tomado pelo movimento LGBQIAPN+ do campo da humilhação para o do orgulho) passa a ser ofensivo porque atravessa uma linha de pressão proibitiva entre professores. Você pode ser homossexual, mas não transformar isso numa vivência política, de pesquisa e que tematize o ensino.

Tais aspectos me levaram a pensar sobre as questões LGBTs e, juntamente com a professora Natália Cavalcanti e outros professores e professoras - não só no IFPA Belém, mas em outros campi -, começamos a encampar a ideia de construir um Núcleo de Gênero e Diversidade (NEGED).

É no NEGED que surge o projeto com as travestis. Saindo aqui do IFPA, atravessando o muro na Travessa Timbó (o campus fica na Avenida Almirante Barroso, entre as travessas Estrela e Timbó) à noite, já vemos as meninas trabalhando na esquina. As travestis não estão ali porque, simplesmente, decidiram. Existe um ciclo de violência que é muito difícil você, de fora, sentir, porque elas sentem ininterruptamente.

Um muro, do ponto de vista material, separa as mulheres que estão se prostituindo aqui na Timbó e o IFPA como instituição pública federal - em tese aberta para a comunidade. No entanto, não é só o muro material: é uma série de labirintos "geossimbólicos" (que é uma releitura de um conceito de Jöel Bonnemaison), tornando quase impossível para elas o IFPA enquanto acesso à educação e formação profissional como direito constituído a todos e todas.

Muro que, do ponto de vista concreto (e não só material), explicita a possibilidade impossível para elas. Veja a noção de escala no "aqui": mulheres sem o ensino fundamental completo, portanto sem acesso aqui, e não tendo acesso, não acionam políticas federais do IFPA - auxílio permanência, bolsas de ensino, pesquisa, extensão; meia passagem ou o lanche minimamente garantido. O projeto surge exatamente deste "aqui concreto". Surge para questionar o que é o IFPA como instituição pública, questionar essa baixa diversidade/diferença humana e entender que os muros aparentemente finos e baixos são um mundo de labirintos que impede certos segmentos humanos (muitas vezes percebidos socialmente como sub-humanos ou não-humanos) de adentrar os protões do IFPA.

Somado a isso, entender quais são as condições de existência dessas mulheres. Porque quando estudamos, na Geografia, o trabalho, o foco é, normalmente, o trabalho matutino formal ou informal. E como pensar a experiência cartográfica do trabalhador - nesse caso da trabalhadora noturna -, sem condição nenhuma de existência do ponto de vista das garantias trabalhistas ou mesmo básicas de vida. É assustador: mulheres que morrem muito cedo - uma travesti tem uma expectativa de vida média em torno de 35 anos no Brasil; a média brasileira é 76,4 anos! Então, elas vivem menos da metade do que nós vamos viver em média.

No entanto, não há pensamento geográfico sobre isto no Pará. Este "aqui labiríntico" é a questão. Você pode levantar os trabalhos históricos e atuais sobre Geografia no Pará e não temos debate sobre isso - salvo raríssimas exceções de iniciativa estudantil e sem tração nas instituições formadoras.

O Beco da Luz é a Belém Noturna - é uma outra cartografia, é uma outra cidade de labirintos e encruzilhadas geossimbólicas, por isso concretas. Quem vive do trabalho sexual vive uma relação completamente diferente na cidade; estão em situação geográfica perpétua de risco e de violência.

Então, a motivação do projeto de pesquisa foi unir a fragilidade do IFPA como instituição não diversa, as coordenadas geossimbólicas sobre os corpos e a fragilidade do pensar encarnado na Geografia paraense ao modo que o IFPA tenta costurar e enfrentar esta situação.

JD: O projeto é de pesquisa e extensão. O que isso significa na prática? Como o projeto vai além da pesquisa e se conecta com a comunidade?

Prof. Wallace: O projeto em si é de pesquisa, mas abre um projeto de extensão que estamos construindo. A Cidade no Beco da Luz é um projeto de pesquisa que tem como prerrogativa a construção de uma metodologia que estamos chamando de metodologia da montação. A montação também tem a ver com a experiência Drag e Travesti - performar você mesmo de maneira intensificada e ampliada quando sai ao mundo. As travestis que estão no projeto - no momento são três: Jéssica Marajoara, Leona, Lu Pantoja - e estamos abrindo o leque. Elas contribuem metodologicamente para o processo, participam das reuniões, vivenciam os processos propositivos que testamos em nós mesmos - um exercício de uma certa ética do trabalho, entender que o outro (neste caso, as outras) não podem ser teu objeto. Estamos constituindo de extensão junto a isso.

Percebemos, a partir da demanda das travestis, que a maioria não terminou o ensino fundamental. Então, estamos costurando uma ação futura ainda não oficializada - pois estamos tentando financiamento -, no sentido de uma turma de travestis na modalidade de Educação de Jovens, Adultos e Idosos (EJAI) para terminarem o ensino fundamental e fazer um curso técnico de Formação Inicial e Continuada (FIC). Então, são 20 meninas; a gente está com uma parceria com a vereadora de Belém Marinor Brito, com Bárbara Pastana do Grupo de Resistência de Travestis e Transsexuais da Amazônia (GRETTA) em Belém; tem parceria também com o Nicolas Ravi. Estamos tentando um diálogo com a Câmara de Deputados para ver se eles nos auxiliam nesse projeto. Porque, como vai ser uma formação noturna - as travestis trabalham a noite -, então a gente precisaria de uma bolsa auxílio, uma certa tranquilidade para se dedicarem a estudar - senão, a gente não consegue terminar a turma. Então, esse é o caminho: terminando o fundamental, abrimos uma turma especial de médio e técnico. O que está no gargalo no momento é o financiamento da bolsa.

O IFPA Campus Belém consegue entrar com a estrutura, professores, talvez lanche - mas, neste momento, dado o contingenciamento de verba federal, a gente não consegue financiar essas bolsas. Seria algo como 20 bolsas de 400 reais por mês em 6 meses de preparatório. Este é o projeto de extensão que estamos tentando desenvolver.

JD: Há outras pessoas envolvidas na construção deste projeto? Se sim, como essa interação se deu e qual a contribuição de cada um para o resultado final?

Prof. Wallace: Temos uma pesquisadora envolvida diretamente - que é a Rosilene Cordeiro; ela é arte-educadora, atriz, performer e professora da SEDUC e da Prefeitura de Belém. Trabalha com corpografia, memórias do corpo.

Na concepção inicial do projeto - como já mencionei -, temos a Jéssica Marajoara, travesti que dá o tom para a gente encaminhar. Embora não tenha uma formação oficial, tem toda a vivência da prostituição nas ruas; é nosso ponto de conexão com as outras meninas e nos coloca os desafios de criar estratégias metodológicas comprometidas com estes corpos.

Temos três estudantes de iniciação à pesquisa, voluntários: o Arthur Alexandre, o Arthur Castro e o Nicolas Quintero. Além de um artista do audiovisual interessado no projeto, Jesus. E a fotografia é seminal - já estava previsto no projeto -, ao final do projeto lançaremos o livro científico-artístico, cujos direitos autoriais será revertido para as travestis que participam.

Eventualmente, nós temos a parceria com as outras travestis - como Bárbara Pastana, liderança importante dialogando com a gente. E há espaço para outras que queiram mergulhar no projeto conosco.

JD: O projeto fala em cartografar o corpo travesti. O que significa cartografar nesse contexto e por que o foco no corpo travesti?

Prof. Wallace: A Geografia cartografa há muito tempo, mas a Geografia faz só de um jeito. Aliás, faz de muitos jeitos, mas tem um padrão cientificizado. Quando a gente pensa em mapa, é o olhar de cima. Chamamos de truque de Apolo por uma razão: o deus grego abria o dia com o Sol na carruagem sobre a Terra. Então, em tese, o olhar dele era esse olhar de cima, de longe e transparente. Estamos falando de um homem que olha tudo de cima e de longe. Tem o aspecto do poder, do domínio da cartografia sobre o mundo - já discutido na geografia há bastante tempo -, porque, de fato, estudamos cartografia como representação da realidade. Mas representações não existem lá e a realidade aqui: elas se misturam. As representações compõem a realidade também.

Os cartógrafos, então, nunca se perguntaram sobre essa posição masculina. E é por isso que falamos de cartografia corporal. É começar a entender que cartografar é um ato político, e que ele não está desencarnado. Por isso que é cartografia corporal - não tanto porque vai ser a partir do corpo do travesti; é mais porque a gente não assume uma posição deífica de olhar de cima e de longe as coisas. Entendemos que é necessário pensar de dentro da situação. E, portanto, talvez o olhar cartográfico mude a perspectiva.

Primeiro, queremos tematizar o ser sexual da cartografia, que não é tematizado, que é escondido atrás de uma neutralidade da cartografia. Segundo, não olhar de cima e de longe, apenas. Não quer dizer que a gente não fará mapas - por exemplo, de distribuição da prostituição -, mas é como a gente pode variar esse olhar e esta posição política de olhar e representar o mundo.

JD: Diante dos desafios e perigos que a comunidade travesti enfrenta, quais são as maiores dificuldades que o projeto prevê encontrar e como planeja superá-las?

Prof. Wallace: Há muitas dificuldades. Eu não vou falar nem da financeira, que seria a primeira: não temos financiamento. É na cara e na coragem de querer fazer. Então, esse seria o primeiro.

É um exercício estruturar a dinâmica de tempo em torno das travestis, porque elas têm tempos muito diferentes dos nossos. O próprio campus funciona dessa maneira - vocês sabem que ele é cheio de manhã e à tarde, sendo que a área administrativa quase não funciona à noite. Então, é uma dificuldade que a gente tenta contornar: respeitar o tempo vivido delas.

Outra questão - decorrente do cuidado ético para com as travestis - já não conseguimos contornar com facilidade. As travestis me relatam os olhares quando entram aqui no IFPA. A Jéssica Marajoara foi barrada inicialmente uma vez - agora a gente tem que fazer uma autorização de entrada toda vez para ela. Precisamos nos modificar por conta do impacto emocional para as travestis. É importante dizer que a gente tem tido uma ótima acolhida aqui na Diretoria de Extensão (DEX), dirigido pela professora Rita Vasconcelos, onde fica baseado o Núcleo de Gênero e Diversidade (NEGED) - preciso destacar isso porque eu não tinha local aqui no IFPA, local mesmo, nem estou falando de lugar.

Muitos computadores no IFPA têm meu perfil de servidor porque onde tinha um eu trabalhava. Certo dia a professora Rita Vasconcelos disse - e eu nem a conhecia ou tinha tido qualquer conversa com ela: "A gente não tem uma sala só pra ti, mas podemos te acolher aqui com o Núcleo de Tecnologia Assistiva (NTA)". Desde então dividimos a sala com o NTA.

Então, temos uma base, um local. Agora precisamos ir constituindo para os/as diversos/as um sentido de lugar.

Há a dificuldade de fundo da validação científica da pesquisa. Do ponto de vista institucional, a grande parte dos professores apoia o trabalho. Porém, se eu estivesse falando de energia solar, por exemplo, talvez eu conseguisse algum financiamento... mas como pesquisamos um grupo que, entre os excluídos de orientação sexual, são as(os) mais excluídas(os) dentro do espectro LGBTQIAPN+ - já que estamos inseridos dentro de estruturas geossociais hierárquicas -, esta questão de ter que provar-se como cientificamente necessário é recorrente.

JD: Qual a mensagem principal que o projeto "A cidade no beco da luz" espera transmitir para a sociedade belenense e para o público em geral?

Prof. Wallace: Bom, eu ainda não sei dizer qual é a mensagem principal. O projeto está em processo. O que eu posso dizer é que temos alguns anseios. Poderia dizer três utopias básicas: carnalizar a cartografia como prática científica - no sentido de que a cartografia precisa enfrentar esse ser sexual que ela sempre empoderou e que nunca se sentiu questionado, o olhar masculino sobre o espaço.

A segunda utopia é entender que as pessoas que compõem os projetos de pesquisa e de extensão não são meramente informantes ou depoentes - são pensantes, sentem, sofrem, riem e, portanto, têm muito a contribuir com a sua experiência de vida e também são co-autores do projeto.

Vai sair um artigo meu em coautoria com a Jéssica Marajoara, por exemplo. Ela não escreveu a parte conceitual e tudo mais, mas se não fosse ela e as vivências, o artigo não teria saído. Então, ela é minha depoente? Ela é minha informante? Temos que colocar ela no lugar de direito: é coautora do projeto. E aí vocês podem questionar - mas pra que serve isso? Talvez na vida cotidiana dela e nas lutas dela não sirva muita coisa, talvez não vá mudar nada, mas eu penso que isso reconhece um lugar de mérito de ordem científica para uma pessoa que está fora da academia, mas é um ser com experiência, saberes, é um ser pensante sobre as próprias experiências e ensinante. Essa é a segunda utopia, digamos assim.

E a terceira utopia é que a gente transforme o IFPA num laboratório - num grande laboratório da experiência da diferença, mais do que da diversidade. Porque a diversidade você pode já ter aqui - uma certa baixa diversidade. Mas a diferença no que se refere a esses corpos que não transitam com facilidade, que são expulsos e barrados, que são olhados - reparem como os nossos olhares compõem essas linhas de pressão. Acho que a terceira utopia é fazer do IFPA um laboratório da diferença, da convivência na diferença. Uma geógrafa que eu gosto muito, já falecida, Doreen Massey, tem um conceito que vale a pena articular: ela propõe que o lugar é o espaço da coexistência dos múltiplos. Você, inevitavelmente, no lugar, vai esbarrar com múltiplos. Eu diria - além dos múltiplos, com os diferentes. Acho que esse é um ponto - se posso corrigir um pouco a Massey: lugar da coexistência de diferentes. Porque você pode ter múltiplos sem muita diferença. Em uma Assembleia Paraense [clube elitizado de Belém], você vai encontrar múltiplos se partirmos dos associados, mas todos mais ou menos classe média alta, mais ou menos brancos, bem alimentados, jogadores de tênis - nada contra o tênis (risos) -, mas um tipo de esporte que é definido como esporte que é da elite, uma distinção simbólica. Ou seja: vai encontrar baixíssima diversidade ainda que tenha múltiplos. Então, corrigindo um pouco a Massey, eu diria que esse projeto pretende ser um anúncio do IFPA como laboratório da experiência na diferença, de acolhida dessa diferença.

Enfim, talvez tudo isso anuncie o quanto precisamos sentir - mais do que, ou tanto quanto - saber. De que não basta só saber. Sentir, no sentido de experimentar junto (não quer dizer que você tem que viver essa experiência), mas estar próximo das pessoas: reconhecê-las, que façam parte do círculo da tua amizade, que seja uma pessoa que vai na sua casa tomar um café ou almoçar um dia. Conviver com a diferença nos possibilita, talvez, pensar criativamente em outros mundos possíveis. Penso que esta é a grande utopia.

JD: Nós, membros da equipe do Projeto de Extensão Jornal Digital, gostaríamos de expressar nosso agradecimento genuíno pela oportunidade de entrevistá-lo.

Prof. Wallace: Eu que agradeço a vocês e a equipe toda do jornal digital pelo momento.

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