Ponto de ônibus. Pontos de história. Pontos vermelhos
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Fonte: Divulgação/Internet |
Por: Eduardo Rodrigues
O despertador grita. O corpo estremece de susto.
Acordar segunda-feira é especialmente irritante depois de dois dias de paz pela manhã. “Tchau final de semana!”. De volta à programação normal: levantar com sono, banho gelado pra acordar, ouvir um som, vestir o uniforme, botar água pra ferver - porque um cafezinho é necessário - e preparar pão com manteiga e queijo. Pego o celular: são 6h20 - “Dá pra chegar no horário”. O protesto dos rodoviários foi semana passada, “ninguém disse que ia ter outro hoje”. Checo o grupo da turma e na descrição diz que hoje tem aula de História - “com o professor certo, essa aula é boa. Com o errado, dá mais sono”. Se despede de mãe e pai. Anda até o ponto de ônibus. Normal. Foi só chegar na parada e lá vem o Cidade Nova 5/Ver-O-Peso. “Égua, nem demorou! Um sinal do universo de que o dia vai ser bom”. Já saiu lotado do final de linha. Sobe, “Bom dia!”. Não tem lugar pra sentar. “Ir em pé é sinal de que o dia vai ser ruim”.
Passando entre a galera, espremido feito sardinha enlatada e a mão no bolso pra catar moedas. “Tenho que tirar a meia-passagem. R$4,60 é um assalto e não tem nem ar condicionado… A que ponto vamos chegar?”.
O bonde acelera, a lataria chacoalha medonhamente. Dentro, todos já no devido espaço: entre cotovelos, mochilas, panças, os assentos todos ocupados e muito em pé. “Por isso que quebra tudo”, alguém comenta. Os próximos 40 minutos serão se segurando em cada curva freada no trânsito metropolitano. Chegou aquele momento de ficar entre o tédio, a análise mental das coisas e o fone de ouvido. “Cara, que todas as divindades do cosmo abençoem a ciência e a tecnologia, às vezes só a música salva”.
Se a gente visse tudo ao redor como se estivéssemos num jogo imersivo e contínuo de pequenas vitórias e derrotas do dia a dia, nossa vida teria outra dinâmica. Ainda mais se aplicássemos uma pontuação positiva ou negativa a cada evento. Tipo: “Tá abafado, sua testa tá suando mesmo com o ônibus de janelas abertas. Menos um ponto no placar”. Mais à frente no trajeto: “Aff, fiquei do lado em que bate o sol… Menos cinco pontos”. O dia seria uma guerra mental entre acaso e nossa dignidade. Talvez seja melhor se distrair de outras formas, porque o ônibus é espaço propício à subtração de muitos pontos de dignidade.
A paisagem é repetitiva: cores velozes, cores lentas. Luzes, reflexos, gente com cara de poucos amigos nas janelas - atrás da sua vida e seu presente-futuro. Carros com vidro levantado. Motos entrecruzando. Obras de décadas atrasam o trânsito. Destruíram a arborização da avenida. À frente, uma manifestação de professores exige mais salário. Prédios, lojas, escolas, lojas, supermercados, lojas, faculdades privadas, lojas, serviço público sucateado, lojas, prédio histórico abandonado, mais lojas, enfim: Belém, né. Intermitentemente: gente nos pontos de ônibus sob o sol esperando ônibus lotado, sujo e quebrado. “Não peguei nenhum Geladão ainda…”, que frustração.
Chegando ao IFPA lembrei que hoje é dia 28 de abril e tem aula de História. O professor chega, entra em sala, escreve no quadro: “Dia 1º de Maio - Dia Internacional do Trabalhador”. Dá bom dia. E diz à turma:
- Vamos conversar sobre essa data histórica, a sua origem e o significado naquele contexto. Depois, vamos analisar relações com os dias atuais. Certo?!
Legal. Esse é o professor que faz parecer que estamos dentro do acontecimento. Quase um filme. Com ênfase, gestos, fala cinematográfica, riqueza de detalhes e bibliografia, ele conta sobre a data, surgida a partir das fortes mobilizações de trabalhadores do ano de 1886 nos Estados Unidos, exigindo e lutando por redução da jornada de trabalho para 8 horas diárias.
- Era comum ter jornadas de 13h, 14h e até 15h por dia - respondeu o professor - Claro que uma carga de trabalho pesada indigna qualquer povo em qualquer país, pois isso significa que as famílias não convivem, não há tempo pra se divertir, estudar e nem investir em mais nada. Nem na própria qualidade do descanso. Por isso as uniões, associações e grupos operários chamaram mobilizações massivas e pacíficas para maio de 1886 pelos Estados Unidos, que evoluíram e cresceram com paralisações das atividades de todo o país, como forma daqueles trabalhadores exigirem mais descanso, tempo para si e sua família.
O professor deixou imagens relativas ao assunto rolando na tela da sala e falou:
- A repressão policial foi intensa contra os atos de 1º de maio. Por isso, novos protestos foram convocados. Milhares foram às ruas mais uma vez. No dia 4 de maio em Chicago, um dos maiores polos industriais da época, que em certo momento uma bomba de origem desconhecida explodiu em meio ao ato. O fato é que a bomba matou um policial e feriu outros. A seguir veio uma brutal repressão policial que matou mais dezenas de operários e feriu outras dezenas. O governo decretou “estado de sítio” para proibir as manifestações em todo o país, os jornais burgueses exigiam pena de morte aos líderes dos trabalhadores, a polícia atacou bairros de operários e prendeu centenas de inocentes. Perseguição atroz. Imaginem vocês a situação! Casas invadidas, pais de família presos sem ter feito nada!
O professor olhou para toda a turma, a turma toda olhava para o professor com muita atenção. Ele seguiu com um tom sério, de suspense e tensão:
- Foram levados ao tribunal 8 trabalhadores - enquanto falava, passava as fotos de cada um dos presos - Eram lideranças anarquistas e socialistas que faziam parte da organização dos protestos. Julgados nos Estados Unidos no que depois foram considerados julgamentos injustos. Um deles foi condenado a quinze anos de prisão e os outros sete, condenados à pena de morte: enforcamento. Eles, então, ficaram conhecidos na história em todo o mundo como “Os Mártires de Chicago”.
Na tela as imagens de capas de jornais de diferentes países com os enforcamentos ocorridos nos EUA, para intimidar as classes trabalhadoras e suas mobilizações.
- Em 1889, no 1º Congresso da Internacional Socialista em Paris, que aprovaram o dia 1º de maio como o “Dia Internacional do Proletariado”. Uma data de luta mundial. Inclusive, o único calendário global de fato. Nem o Natal é comemorado por todos os países, nem o Ano Novo é no mesmo dia - disse o professor.
"Que aulão! Essa é minha matéria favorita. Dá vontade de ser professor", pensei. O professor passou um documentário e fez lembrarmos das últimas greves, protestos e manifestações ocorridas. Lembrei da dos professores hoje cedo. Dos rodoviários na outra semana. Da greve no IFPA. Da ocupação na SEDUC. Fui anotando.
- Ainda hoje tem gente que ao ver manifestações, protestos, greves, atos públicos ou marchas, só consegue enxergar os efeitos aparentes, os mais imediatos. Como a rua interditada, o atraso no trânsito. Não conseguem ler o que está se passando por trás dos transtornos momentâneos. Não conseguem ver além e entender o sofrimento diário que grupos inteiros de famílias passam o ano todo em suas vidas por conta da situação do trabalho - explicou o professor, que foi passando as fotos de pessoas nas ruas com faixas e cartazes, com dizeres em vários idiomas, em japonês, inglês... Todas por causas comuns. Latinos, asiáticos, africanos, indianos, em diversas partes do mundo. Então, o professor encerrou a aula dizendo:
- Nosso papel aqui é enxergar além do superficial. O 1º de maio é um ponto histórico de virada, que alteraria direitos dos trabalhadores no mundo. O espírito desta data é o espírito da luta coletiva dessa classe em busca de melhores condições de vida. Neste 1º de maio, por exemplo, no Brasil há uma grande luta pela redução da jornada de trabalho. O fim da escala 6x1, que é quando você trabalha seis dias na semana e só tem um dia livre para poder descansar e tudo...
Ao final da manhã, já no ônibus a caminho de casa. Pensativo sobre o que tinha escutado e discutido na aula de História. Buscava relacionar passado e presente: “Qual a relação daqueles protestos com os atuais?”. Foi nesse instante que, de novo ali pela Av. Almirante Barroso, vi uma cena pesadíssima: a Polícia Militar reprimia violentamente a greve de professores. Usaram balas de borracha. Gás lacrimogêneo. Spray de pimenta. Cassetetes…
A rua ficou cheia de gás. Gente corria por todos os lados. Os carros pararam. A cavalaria trotava no asfalto e no carro-som, vozes gritavam:
- Nossa manifestação é pacífica, é absurdo o que a PM está fazendo contra os professores do Pará! Inaceitável! Isso é responsabilidade do governador!
Acho que o que mais lembro agora são os braços e pernas dos trabalhadores perto do ônibus: aqueles pontos vermelhos de sangue marcando onde foram baleados.
Um dia trágico para os profissionais da educação no Pará.
“Menos mil pontos para o governo e a polícia militar…”
Atônito, vejo algo da história se repetindo.
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