Lunar


Por: Mauro Leal

A criança chorava no berço, mas os demais pareciam não ouvir nada, entorpecidos que estavam diante da lua que, através da janela quebrada, parecia entrar no humilde quarto e envolver a todos com um hálito gélido que convidava ao sono.

A mulher bocejou, estava exausta por tantas tentativas infrutíferas de fazer a criança comer um pedaço de pão, mas ela era pequena demais, demasiadamente. Se tivesse mais alguns meses, poderia colocá-la sentada na cadeirinha de plástico, aquela que a vizinha jogou fora dia desses, e poderia ensiná-la a comer devagarinho... mas quem ela estava tentando enganar, não havia nada naquela noite. Talvez fosse melhor dormir e aguardar que amanhã fosse um dia melhor, esplêndido, como nos filmes que ela assistiu quando criança na casa da madrasta, ou da tia? Não importa agora, eram filmes muito alegres, felizes, desses nos quais tudo acaba bem, em abraço, corrente de felicidade. 

Coçou-se e não percebeu que arranhou o seio flácido e seco. É claro, ela mesma está faminta, e poderia comer a lua se pudesse pegá-la, mas essa danada foge dos dedos magros dela, esconde-se atrás de nuvens cinzas, tão cinzas que parecem chorar. Mas talvez aquelas lágrimas não fossem de outra pessoa, talvez fossem...

No canto do quarto o bebê chorava, impositivo. Não iria parar, não devia parar. Se fosse preciso, acordaria a rua, o bairro inteiro. E este ato imperioso irritou o homem, que esmurrou o joelho magro. Em diálogo silencioso, mostrou o saco de tomates sujos, alguns apodrecidos, apanhados no início da noite, perto do restaurante do seu Antônio. Na hora, pareciam bons, degustáveis, mas quando chegou em casa, a tragédia de uma vida encenada em um único ato. Ainda tentou convencer a mulher a fazer alguma coisa, talvez suco. Não serve? Veja ai! Não serve, homem de Deus, desse jeito você acaba de vez com o pequeno, sabe, bactérias, aquelas coisas que deixam a gente doente. Além de tudo, estavam roídos, talvez ratos, aqueles enormes que correm pesados pela calçada. 

Ele fez o que podia. Estava exausto. Caminhou o dia inteiro e no fim da tarde pediu aqui e ali, mas a sua mão suja era mais motivo de repulsa do que piedade. Viravam o rosto para ele como se as cadeiras tivessem valor maior do que aquela existência desgarrada. Era algo revoltante, mas não se podia fazer nada. Aceitar, não é? Quem sabe compreender que a vida talvez seja feita daqueles tipos de tijolos que esfarelam quando apertados. Eles? Eles entendiam muito bem, mas e o pequeno? Ele não queria saber de desigualdades, de juros sobre juros, sapatos brilhantes, ternos de mil, dois mil reais, sandálias que fazem cloc cloc  toda vez que tocam o mármore. Ele olhou para a mulher, não seria hora?... Ela entendeu aquele olhar e estremeceu. Não, não queria. Ainda não. Tinha somente vinte e um anos e queria testemunhar coisas grandiosas, quem sabe milagrosas, como o pequeno indo para a escola, depois para a universidade, virando doutor disso e daquilo. Mas que loucura! Não seria um dia memorável ver o pequeno receber aquilo, aquele papel? Eles se abraçariam e lágrimas escorreriam da face dela e toda a terra se encheria de uma luz calorosa, como se a esperança tivesse se tornado real, de carne e osso, e andasse pelas ruas distribuindo pequenas porções de felicidade, em saquinhos. 

Ele ouviu descrente aquele sonho que não o atingiu de forma alguma. Escola. Doutor. Quem ela pensava que era para criar aquele tipo de imaginação? Não olhava ao redor para sentir o verdadeiro frio entre as tábuas apodrecidas do velho barraco? Era hora de aceitar: eles não foram longe, na verdade eles nem saíram do ponto de partida, ficaram como que petrificados, pois não tinham energia suficiente para iniciar qualquer projeto. Tudo o que haviam feito até ali era piar baixinho, como rolinhas que deram de encontro em um voo absurdo, ridículo. Era necessário aceitar que eles não haviam nascido para aquilo. Na verdade, para nada, pois a verdade é que aquilo ali, aquela existência que levavam era um equívoco, uma espécie de ruptura na estrutura da realidade. Eles não deveriam estar ali, respirando, subtraindo da terra uma chance, um fragmento, uma fagulha. 

Abraçaram-se. Ela perguntou se ele tinha certeza, se de fato ele estava preparado para fazer aquilo. Ele respondeu, com um gesto de queixo, que sim, que estava pensando naquilo há alguns dias, pois, de fato, estava exausto. E não era justo com o pequeno arrastá-lo para aquela tradição hereditária de ausência, subtração, desmedida, esvaziamento. Era isso que eles eram, criaturas esvaziadas, ocas, cujos espaços eram preenchidos com perspectivas frustradas.

Ele foi ao berço e apanhou o pequeno, que diante do toque paterno pareceu se acalmar momentaneamente. Talvez tenha até sorrido, mas a escuridão não permitiu que o homem pudesse testemunhar aquele momento infinito de beleza e eternidade. Abraçou o pequeno, como se quisesse protegê-lo do mundo e das demais pessoas, aquelas mesmas que brindavam e cortavam a carne temperada de perus tostados com precisão, mas eram incapazes de dizer: “eis aqui”. Sim, era chegada a hora de confessar que ele falhou e que já não tem mais forças para fingir que tudo era somente uma questão de tempo até normalizar. Estava fatigado daquelas desculpas, daquele jeito bruto de dizer que mais uma vez ele não havia conseguido alcançar a estrela das canções, a jóia dos desenhos animados. Ele estava desnudo, mas o filho não precisava passar por aquilo, não mais. Beijou a testa do pequeno e depois aproximou-se da mulher. Esta entendeu o gesto e deus dois passos em direção à janela, abrindo-a de par e par. Neste momento, uma forte luz adentrou no pobre cubículo e envolveu aqueles três corpos esfomeados. Era a lua que lançava sobre aquela pequena família um brilho até então nunca visto pelos três. O pequeno estendeu a mão e tentou pegar a lua, que se deixou apanhar. 

No dia seguinte, a vizinha, com um pedaço de pão, bateu à porta. Chamou uma, duas vezes. Estranho. Não costumavam sair os três. Olhou por uma das frestas. Não viu ninguém. Deu de ombros e voltou para sua casa, pois ainda tinha que lavar algumas roupas dos meninos que estavam na escola. O sonho dela é que pelo menos um dos quatros virasse doutor...  


Mauro Lopes Leal

Mauro Lopes Leal é professor universitário, escritor e desenhista, natural da cidade de Belém, Pará. É doutor em Letras pela Universidade Federal do Pará e um leitor voraz de contos e romances futuristas e distópicos. Gosta de relacionar filosofia e literatura, as duas áreas pelas quais transita com profundo interesse e amor genuíno.

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